terça-feira, 30 de agosto de 2011

  As pesquisas sobre nossos antepassados estão em expansão. Cada vez mais, os descendentes dos imigrantes judeus marroquinos, a exemplo da família Roffé, organizam árvores genealógicas e reservam seu legado familiar para as próximas gerações.
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    A família Roffé é originária de Arzila (Asilah), pequena cidade à beira-mar, localizada na atual província de Tanger, que abrigava uma numerosa colônia judaica. Arzila, hoje com cerca de 20.000 habitantes, é muito antiga: no primeiro milênio antes da era atual os fenícios estabeleceram um porto no local com o nome de Zili; ela foi dominada por cartagineses, romanos e árabes. De 1471 a 1578 foi ocupada pelos portugueses, que ergueram as muralhas ainda existentes e a transformaram em importante centro comercial; a seguir foi perdida para os espanhóis, que a chamavam de Arcila. Posteriormente foi cedida a governantes muçulmanos e recebeu o nome árabe atual: Asilah.
   A palavra Roffé é de origem hebraica e significa médico; a família se comunicava em língua espanhola. Levi Roffé ou Roiff nasceu e morreu em Arzila, onde viveu 106 anos, de 1817 a 1923.
   Era negociante nas feiras e figura de alguma projeção na comunidade israelita; consta que havia uma rua com o seu nome na cidade.
   Casou-se duas vezes: primeiro com Honória e posteriormente com Cota. Foram seus filhos: Abraham, Alfredo, Jaime, Aziza, Bonina e Camila (Jaime e Camila eram filhos de Cota). Os três filhos homens e vários netos, filhos de suas filhas, emigraram para o Brasil. Abraham casou-se com Anna Barcessat e é dele que descende a família Roffé radicada no Brasil. Alfredo foi casado com Júlia Roffé, sua sobrinha, filha de Abraham. Jaime não teve filhos. Aziza foi casada com Abraham Anijar e seu filho Samuel emigrou para o Brasil, onde casou com Estrela Bonina foi casada com Mair Bemergui e seus filhos Abraham, já casado com Messody Gabbay, e Naftali, posteriormente casado com Ester Zagury, também emigraram para a Amazônia.

Levy Roiff, no início dos anos 20

Túmulo de Levy Roiff em Asilah - Marrocos (2008)
por Chris Silver
   Abraham Roffé nasceu em Arzila em 1857 e viajou para o Brasil em 1872. Retornou ao Marrocos, casou-se com Anna Barcessat aproximadamente em 1875 e voltou para a Amazônia sem a família. Estabeleceu-se no município de Afuá (Roflandia) e quando sua situação melhorou mandou buscar mulher e filhos. Posteriormente vários parentes seus e da mulher também vieram e foram as raízes de outras famílias de sefaraditas do Pará: Samuel Anijar (filho de Aziza Roffé Anijar); os irmãos Abraham e Naftali Bemergui (filhos de Bonina Roffé Bemergui); os irmãos Abraham e Salvador Bemergui (filhos de Salomão Bemergui, irmão de Mair marido de Bonina); Moisés Barcessat (filho de Messod Barcessat, irmão de Ana Barcessat Roffé), Naftali Mair Bemergui, Abraham Salomão Bemergui e Moisés Barcessat casaram com netas de Abraham e Anna, respectivamente Ester Zagury, Camila Roffé e Anna Athias (Nina). 
   Mais tarde, Abraham transferiu-se para Belém, onde participou de importante firma comercial de seu filho Isaac. Para os padrões da época e da região, era considerado um homem rico. Era de baixa estatura, robusto, moreno, austero, pouco simpático, mascava fumo. Relacionava-se muito bem com o filho Isaac, com quem tinha interesses comerciais estreitos, e com eles também trabalhavam seus filhos Simão e Mário, bem como o neto Marcos Athias. Conhecido como “o velho Roffé”, faleceu em 1º de fevereiro de 1932, aos 75 anos, e está sepultado no antigo Cemitério Israelita de Belém da Rua José Bonifácio.

    Privações e persistência
  Anna Barcessat Roffé nasceu em Arzila em 1862, filha de Moisés Barcessat e Júlia Bencheton. Casou-se em 1875, com 13 ou 14 anos, e aos 15 anos deu à luz sua primeira filha: Meriam. Seus filhos mais velhos nasceram em Arzila e posteriormente veio ao encontro do marido no Brasil, onde nasceram os cinco filhos mais novos.
   Nos anos em que permaneceu com os filhos no Marrocos, sofreu grandes privações. Os recursos deixados por Abraham acabaram, mas ela nunca escreveu a respeito ao marido. Os filhos de Abraham e Anna foram: Meriam, Julia, Isaac, Sarah, Clara, Elias, Simão, Sol e Mário. Meriam casou-se com Fortunato Athias, Júlia com seu tio Alfredo Roffé, Isaac com Fortunata Cohen, Sarah com Leão Zagury, Clara com Simão Sarraf, Simão com Cita Marques e posteriormente com Marina Chermont, Elias com Lucy Bentes, Sol com Diógenes Ferreira de Lemos e Mario com Nelly Cohen.
  Gorda e precocemente envelhecida, sofria de hérnia abdominal, tendo sido operada várias vezes, e passava a maior parte do tempo deitada em uma rede, ou ficava sentada junto à janela conversando com os conhecidos. Gostava muito do jogo do bicho e sempre pedia a alguém que passava sob sua janela para ir fazer o seu joguinho. Era simpática, afável, solidária, caridosa. Faleceu em Belém, em agosto de 1922, aos 60 anos. 
   Fortunato Athias, nascido em Rabat em 1867, emigrou jovem e sozinho. As outras duas famílias do mesmo nome radicadas no Pará aparentemente não tinham parentesco com ele. Passou por Belém e, como era comum entre os jovens recém-chegados, foi encaminhado para a localidade de Macapá por uma das firmas aviadoras da região. Estabeleceu um pequeno comércio e, não resistindo à solidão, ligou-se a uma mulher da região que lhe deu um filho, José Lopes de Menezes, conhecido como José Athias. Após a morte da mãe de José, Fortunato casou e formou família dentro da religião judaica.
    Em 1896, aos 29 anos e já em situação financeira razoável, casou com Meriam Roffé, filha mais velha de Abraham. O casal foi viver em Macapá, onde nasceram os primeiros filhos, e José foi incorporado à família como irmão mais velho. Anos depois, a familia transferiu-se para uma localidade no município de Breves, Livramento do Ituquara, de propriedade de seu cunhado Isaac Roffé, que posteriormente adquiriu. Um grande barracão construído sobre estacas de madeira para proteção contra a subida das marés, na margem do rio Ituquara, afluente do Amazonas, servia ao mesmo tempo de moradia, depósito de mercadorias e loja. Ali criou seus 10 filhos: José e os nove que Meriam lhe foi acrescentando a intervalos de dois anos. 

    Crise econômica e tragédia pessoal 
  Os ingleses, após anos de pesquisa, tinham conseguido aclimatar sementes contrabandeadas aos solos de suas colônias na Ásia e a partir de 1910 as plantações da Malásia começaram a produzir volumes progressivos a baixo preço, com os quais os produtos brasileiros não podiam competir. A crise da borracha levou Fortunato Athias à ruína, ao lado da maioria dos pequenos comerciantes judeus espalhados pelas margens dos rios da Amazônia. Em 1913, Fortunato, levando consigo seu filho Maluf, foi tentar um novo negócio em Macapá e lá ocorreu uma tragédia: aos 14 anos, Maluf, conhecido por Ioiô, pensando tratar-se de um pó analgésico, ingeriu uma substância chamada Sublimado Corrosivo, que estava sob um balcão da pequena loja. Morreu envenenado dias depois, em Belém, para onde o pai o levara tentando salvá-lo.
    Voltou Fortunato para o Ituquara, enfrentou o desespero de Meriam, que só soube do ocorrido depois do filho enterrado, e o resto de sua vida foi de muito trabalho e dificuldades financeiras. Nos últimos anos mudou-se para Belém e os filhos José e Abraham ficaram cuidando dos negócios no Ituquara. Fortunato era de baixa estatura, franzino, tinha os cabelos alourados e os olhos azuis, a pele queimada do sol da Amazônia. Expressava-se bem em português. Os filhos o descrevem como um homem calmo, conformado com os revezes do destino, simples e muito religioso. Tinha sempre a cabeça coberta e freqüentemente o livro de orações nas mãos, guardava e fazia toda sua grande família guardar rigorosamente os sábados e as festas religiosas. Faleceu em Belém, em 1931, aos 64 anos. 

   Uma mulher empreendedora
   Meriam Roffé Athias nasceu em 1877 em Arzila. Dizia não saber a data de seu nascimento e os cálculos sobre a idade baseiam-se na sua afirmação de que tinha 20 anos ao dar à luz sua primeira filha: Alegria. Após a partida para o Brasil de seu pai e posteriormente de sua mãe continuou vivendo em Arzila na companhia de parentes, e, já moça, com 16 ou 17 anos, finalmente transferiu-se para o Brasil para viver com os pais.
Família Athias - 1917
  Casou-se com Fortunato Athias em 1896. O colapso da borracha e a Grande Guerra arruinaram a família, coincidindo com esse período a morte trágica do filho Maluf. Meriam foi a Belém conversar com a mãe, que a ajudou com cinqüenta mil réis. Pôs o dinheiro na bolsa e saiu sem saber bem como usá-lo, pois as necessidades eram muitas, e viu um anúncio: “Ensina-se Indústria”. Procurou o professor, explicou a situação, descreveu o local onde vivia e os recursos naturais disponíveis: sementes oleaginosas, cinzas produzidas pelas queimadas, etc. Foi orientada sobre a técnica de produção de sabão, comprou 50 kg de soda cáustica, o menor volume que se vendia, e voltou para o Ituquara.
   Lá, com ajuda do enteado José, montou a pequena indústria. Os filhos meninos colhiam nas matas próximas as sementes e assim iniciou-se a produção do Sabão Cacau. No início o volume da produção era irregular e a qualidade do produto deixava a desejar. Mandou o filho Abraham a Belém, para trabalhar durante alguns meses como aprendiz em uma fábrica de sabão. Com o retorno do filho, a pequena indústria deslanchou e transformou-se na principal fonte de renda da família. A disposição, a garra e o espírito empreendedor de Meriam Roffé Athias eram extraordinários. Em tempos difíceis, naquele fim de mundo, cuidava dos nove filhos pequenos, dirigia a casa com eficiência, administrava a produção do sabão, plantava mamoeiros e bananeiras, supervisionava os pequenos roçados de cana, milho e mandioca; Fortunato cuidava da loja e de suas orações.
   Aos poucos a situação foi melhorando. As filhas mais velhas, Alegria e Ana (Nina) casaram-se ainda no Ituquara com Jacob Gabbay e Moisés Barcessat, respectivamente, pequenos comerciantes das proximidades. A grande festa de casamento de Alegria, com as presenças
dos parentes e das muitas famílias judias da região, ficou marcada e lembrada por
toda a família. Os filhos pouco a pouco eram enviados a Belém para estudar. Marcos foi morar e trabalhar com seu tio e padrinho Isaac Roffé, figura de projeção nos meios sociais e comerciais da cidade. Os outros, Isaac, Moisés e Jacob, foram morar numa pensão, dirigida pelo casal Elias e Sol Israel, que abrigava meninos judeus do interior e lhes fornecia por cinco mil réis ao mês por cabeça, além da moradia e alimentação, o ensino do hebraico e orientação religiosa. Todos trabalhavam de dia e estudavam à noite. José e Abraham foram os únicos que não foram estudar em Belém, por seu trabalho e presença serem indispensáveis no Ituquara. 
   Em meados dos anos 1920 Meriam transferiu-se para Belém para acompanhar de perto os filhos. Fortunato, devido a problemas de saúde, acabou também se fixando na capital, onde faleceu em 1931. Com a prosperidade dos filhos, especialmente Marcos Athias, que se tornou importante comerciante e exportador, a situação se estabilizou. Meriam fez duas viagens para o Rio de Janeiro e São Paulo, onde visitava sua irmã Clara e família, acompanhada de sua filha mais nova Honória. Em 1945 viajou mais uma vez para São Paulo para visitar o filho Isaac, que aí residia com a esposa.
  Meriam criou desde pequeno seu neto Isaac Jaime Gabbay, formado em Medicina em 1950, que a acompanhou até o fim dos seus dias. Era baixa, corpulenta, imponente, morena de olhos escuros e rosto bonito; os cabelos nunca embranqueceram completamente. Falava muito bem o português, sem nunca ter perdido o sotaque espanhol. Sem educação formal, tinha lido muito e era bem informada, com conversação agradável. De temperamento muito forte, quando a contrariavam usava o dialeto “haketia”. Apesar de não ser religiosa como o marido, fazia questão de manter todas as tradições judaicas. Dois de seus filhos e um neto (Marcos Athias, Abraham Athias e Isaac Barcessat) foram presidentes da Comunidade Israelita do Pará e outro, Isaac Athias, foi presidente da Comunidade Israelita Sefaradita de São Paulo. Faleceu em Belém, em 1956, aos 79 anos.
   Os filhos de Fortunato e Meriam foram:
   Alegria (1897-1986), casada com Jacob Gabbay; Maluf (1899-1913); Ana/Nina (1902-1975), casada com Moisés Barcessat; Marcos (1904-1974), casado com Preciada Levy; Abraham
(1906-1988), casado com Sime Bensimon (Lalita); Isaac (1908-1998), casado com Amélia Dimenstein; Moisés (1910-1993), casado com Omarina Muniz; Jacob (1913-1988), casado
com Marina Veiga; Honória (1915-2004), casada com José Rodolpho França Carneiro e posteriormente com Salomão Bemergui. 
* Rinaldo C. Carneiro é médico e reside na cidade de São Paulo